Vazio no peito e no barril | Adeus, Chespirito!

Após ser acusado de "ladrão" ("ladrãozinho!") por pessoas que sempre teve como amigas, o pequeno Chaves junta seus po…

Após ser acusado de "ladrão" ("ladrãozinho!") por pessoas que sempre teve como amigas, o pequeno Chaves junta seus poucos pertences em uma trouxinha e caminha lentamente pelo pátio da vila, parecendo se despedir de cada cantinho do lugar que considerava sua casa. O velho barril recebe um último e especial afago das mãos sujas do menino, que, finalmente, vai embora, deixando um vazio não apenas no barril, mas no peito de todos que, em algum momento da vida, assistiram a "O Ladrão da Vila", um dos mais célebres episódios de "El Chavo Del Ocho".

Essa sensação de vazio se repetiu, mas desta vez em definitivo. Se naquela ocasião Chaves regressou à vila e ficou de bem com seus amigos, no episódio do dia 28 de novembro de 2014 ele optou por um desfecho diferente. Lá foi o Chaves e, sem querer querendo, levou um pouco do coração de cada fã - e, nossa, eles são muitos! E agora? Quem poderá consolá-los? Resposta: o próprio Chespirito, através de seu legado gigantissíssissimo, de suas criações, que atravessam décadas sendo descobertas e redescobertas, e que até hoje fazem meio mundo rir (sim, com as mesmas piadas, e daí?).

Fazer rir. Nisso o "pequeno Shakespeare" era bom. Quase bestial, como diria o Chimpanzé Reumático, digo, Seu Madruga. Vestido como o maltrapilho Chaves, Chespirito deixava seus quarenta e poucos anos guardados e transformava-se - tal qual um super-herói quando veste a máscara - em outra pessoa, um menino cujos adjetivos para classificá-lo nunca são suficientes: travesso, louco de fome, impertinente, "importunante" (by Chiquinha), tonto (bastaaaante tonto). Mas, apesar de tudo isso, Chavinho estava longe de ser um garoto-problema. Pelo contrário: absorvia como ninguém os ensinamentos do Pacote de Osso Seco, como amar seus inimigos e não vingar-se de ninguém; dividia seus brinquedos e refeições; assumia a culpa para livrar o Madruga de uns sopapos da Florinda e ainda tinha tino comercial.

Novamente, tal qual um super-herói, Chespirito envergava o traje vermelho com anteninhas de vinil e um coração amarelo, munido de sua Marreta Biônica. Mas não agia como um super-herói. E aí residia o charme e a graça do Chapolin Colorado, em sua falta de jeito, em sua péssima memória para decorar ditados (pau que nasce torto e te direi quem és), e especialmente em sua infinita coragem - afinal, o que há de corajoso em não sentir medo? Coragem é se borrar todo ao ver o fantasma do longe mouco e, ainda assim, conseguir enfrentá-lo!

E, assim, com a mesma coragem do Polegar Vermelho, Chespirito fez, não só de Chaves e Chapolin, mas de todos os seus outros personagens e programas, verdadeiras aulas de humor. Um tipo quase raro de comédia hoje em dia, em que a a sofisticação estética não é uma necessidade; em que a piada não precisa ser suja ou preconceituosa para ser engraçada; em que a realidade de todo um continente era refletida no microcosmo de uma vila que apresentava os estereótipos de uma sociedade fragmentada cultural e economicamente. Chaves e Chapolin não eram só "ninguém tem paciência comigo" ou "não contavam com minha astúcia". Assim como Chespirito não era apenas um mero comediante.

Ao contrário do que diz a letra de "Boa Noite, Vizinhança" (o hit que embala o final da saga de Acapulco), não foi a chegada da aurora que nos surpreendeu. Durante o entardecer, curiosamente enquanto Chaves era exibido no SBT, veio a notícia - tantas vezes desmentida - de que Roberto Gómez Bolaños havia falecido. Imediatamente, veio à mente a cena final do episódio na praia, em que todos despedem-se de Chaves, que canta: "Prometemos despedirmos/ Sem dizer adeus jamais/ Pois haveremos de nos reunirmos/ Muitas, muitas vezes mais". Enquanto o sol começava a se pôr, Chespirito disse um último boa noite à seus amigos, à sua vizinhança, a todos seus admiradores. Obrigado por tudo, Chavinho. Era isso (isso, isso).

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